Abordada em resoluções do Estatuto da Criança e do Adolescente e por órgãos do setor, como o CONAR, a abordagem publicitária gera debate no ambiente das comunicações.
Definir o público-alvo de um produto ou serviço e direcionar os esforços de marketing diretamente para ele é a principal premissa da publicidade. Essa lógica, no entanto, não é a mesma quando se trata de publicidade infantil.
Como as crianças são mais vulneráveis às mensagens de marketing e, ao mesmo tempo, não têm o mesmo discernimento que os adultos para tomar decisões sobre o que querem, a comunicação de marketing para esse grupo deve obedecer a um conjunto extenso de regras e regulamentos.
Ao longo do texto, será possível entender um pouco sobre essas regras e diretrizes nacionais relativas à publicidade dirigida a crianças.
Quem é o consumidor infantil?
Antes de analisar a questão sob a ótica da publicidade, é importante definir como se caracteriza esse público consumidor infantil.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) categoriza criança como qualquer pessoa até doze anos de idade. A partir daí, até os 18 anos, a pessoa é considerada adolescente.
Qualquer comunicação com apelo mercadológico voltado para a faixa etária de 0 a 12 anos é, portanto, categorizada como publicidade infantil.
Do ponto de vista do consumidor, as crianças são um público interessante. Afinal, mesmo que não façam uma compra direta, as crianças usam roupas, calçados, alimentos, brinquedos, produtos de higiene e outros itens.
Com o objetivo de categorizar e entender melhor os subgrupos de consumidores presentes entre crianças e adolescentes, a Kids Corp., empresa de kidtech especializada no segmento infantil, elaborou o guia "Como entender, classificar e diferenciar: crianças e adolescentes em subsegmentos".
O relatório fornece detalhes de como as crianças se relacionam com as marcas, além de medir o quanto elas influenciam as decisões de compra dos adultos. A divisão feita pelo estudo classificou crianças e adolescentes em várias categorias. Dê uma olhada:
1-Primeiro estágio
De zero a três anos de idade. Nessa fase, 100% das decisões de compra são tomadas pelos pais ou outros adultos, que têm total controle sobre o contato das crianças com as marcas.
2-Crianças em idade pré-escolar
Esse grupo inclui crianças entre 4 e 6 anos de idade, uma fase em que seus primeiros gostos estão sendo desenvolvidos. Nesse momento, as crianças já têm influência nas decisões domésticas: 45% influenciam as assinaturas de serviços de streaming e 50% interferem na compra de alimentos ou bebidas.
3-Terceiro estágio
A influência desse grupo, formado por crianças de 7 a 9 anos, nas decisões de consumo é ainda maior: 53% delas influenciam as escolhas de alimentos e bebidas e 20% dizem que já têm seu próprio dinheiro para comprar o que querem. Mais da metade desse grupo (55%) passa a maior parte do tempo se entretendo com brinquedos.
4-Pré-adolescentes
O último estágio da categoria infantil é formado por crianças de 11 a 13 anos, que já demonstraram rejeição às marcas infantis e têm seus gostos influenciados por amigos, youtubers e gamers. Desse grupo, 82% passam o tempo consumindo vídeos do YouTube, 71% jogando videogame e 53% assistindo a algum tipo de conteúdo de streaming.
Como é caracterizada a publicidade infantil?
A publicidade infantil é qualquer mensagem de marketing que apela às crianças para que consumam algum tipo de produto ou serviço.
Isso se aplica a mensagens em diferentes mídias, seja televisão, revistas, redes sociais, plataformas de vídeo, cinema, jornais, mídia out-of-home ou qualquer outro meio.
Para atrair a atenção desse público, as mensagens dirigidas às crianças geralmente seguem determinadas características, como o uso de cores e trilhas sonoras chamativas e, em muitos casos, a presença de personagens que geram identificação com os pequenos.
Outra estratégia, que costumava ser muito utilizada em propagandas nas décadas de 1980 e 1990, era a presença de celebridades e personalidades do universo infantil para reforçar o apelo ao consumidor.
As regras e leis da publicidade infantil
A questão da publicidade infantil no Brasil tem sido um tema de controvérsia e debate no setor de comunicações há anos. Nas décadas de 1980 e 1990, os comerciais de brinquedos, roupas, calçados e outros produtos que apelavam diretamente para as crianças eram bastante comuns, especialmente na televisão aberta.
Em alguns casos, essas mensagens chegavam ao ponto de dizer que a criança deveria pedir determinados produtos aos pais e até mesmo incentivá-la a comprar um item para mostrar aos amigos, despertando assim o desejo de outras crianças de comprar aquele produto.
No Brasil, existem algumas leis que orientam a prática da publicidade dirigida às crianças. O Código de Defesa do Consumidor de 1990 afirma que "a publicidade dirigida à criança aproveita-se da deficiência de julgamento e experiência desse público". Portanto, direcionar esse público seria abusivo e ilegal, de acordo com o texto do Código.
Também datado de 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) responsabiliza a família, a comunidade, a sociedade e o Estado pelo bem-estar e pelo desenvolvimento saudável de crianças e jovens.
O que diz o código de autorregulamentação da publicidade?
O Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) trata do assunto em seu artigo 37, que dispõe: "O esforço dos pais, dos educadores, das autoridades e da comunidade deve encontrar na publicidade um fator de apoio à formação de cidadãos responsáveis e consumidores conscientes. Com isso em mente, nenhum anúncio publicitário poderá dirigir apelo imperativo de consumo diretamente às crianças".
O Conar proíbe anúncios que:
- desvirtuem valores sociais positivos (amizade, urbanidade, honestidade, justiça, generosidade e respeito às pessoas, aos animais e ao meio ambiente);
- provoquem deliberadamente qualquer tipo de discriminação;
- associem crianças e adolescentes a situações incompatíveis com sua condição;
- imponham a noção de que o consumo do produto proporciona superioridade ou, na falta desta, inferioridade;
- provoquem situações de constrangimento para os pais ou responsáveis, com o objetivo de impulsionar o consumo;
- utilizar crianças e adolescentes como modelos para fazer apelo, recomendação ou sugestão direta de uso ou consumo, ainda que seja permitida a sua participação nas demonstrações pertinentes ao serviço ou produto;
- utilizar formato jornalístico, a fim de evitar que o anúncio seja confundido com notícia;
- divulgar que um produto destinado ao consumo de crianças e adolescentes contém características peculiares que, na verdade, são encontradas em todos os produtos similares;
- utilizar situações de pressão psicológica ou violência capazes de provocar medo.
O código de autorregulamentação também condena o merchandising ou a publicidade indireta contratada que utilize crianças, elementos do universo infantil ou outros artifícios com o objetivo deliberado de captar a atenção desse público específico, qualquer que seja o veículo utilizado. Afirma, ainda, que nos conteúdos segmentados criados, produzidos ou programados especificamente para o público infantil, qualquer que seja o veículo utilizado, a publicidade de produtos e serviços destinados exclusivamente a esse público ficará restrita aos intervalos e espaços comerciais.
Por fim, estabelece que crianças e adolescentes não devem aparecer como modelos publicitários em propagandas que promovam o consumo de quaisquer bens e serviços incompatíveis com sua condição, tais como armas de fogo, bebidas alcoólicas, cigarros, fogos de artifício e loterias, e todos os demais igualmente afetados pela restrição legal.
Quais são as práticas abusivas na publicidade infantil?
A questão da publicidade infantil motivou a publicação da Resolução 163 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), que caracterizou algumas práticas como abusivas.
De acordo com a resolução, "a prática de direcionar publicidade e comunicação mercadológica à criança, com a intenção de persuadi-la a consumir qualquer produto ou serviço, é considerada abusiva, tendo em vista a política nacional de atendimento à criança e ao adolescente", utilizando os seguintes aspectos. Veja:
1- Linguagem infantil, efeitos especiais e cores excessivas;
2- Trilhas sonoras de músicas infantis ou cantadas por vozes de crianças;
3- Representação de crianças;
4- Pessoas ou celebridades que atraem crianças;
5- Personagens ou apresentadores infantis;
6- Desenhos animados ou animações;
7- Fantoches ou similares;
8- Promoção com distribuição de prêmios ou brindes colecionáveis ou com apelos a crianças;
9- Promoção com competições ou jogos que atraem crianças.
A polêmica em torno da publicidade infantil
Na opinião de alguns anunciantes e empresas, tantas restrições estão prejudicando a economia e os negócios de várias empresas da cadeia de publicidade, bem como os veículos de mídia.
Do lado daqueles que apóiam essa ideia, há o argumento de que as restrições à publicidade infantil foram responsáveis pela redução do conteúdo voltado para crianças na televisão aberta.
Há cerca de duas décadas, praticamente todas as grandes emissoras de TV comerciais tinham um programa infantil, composto essencialmente de desenhos animados ou programas de entrevistas. Nos últimos anos, entretanto, esse tipo de conteúdo infantil tornou-se raro.
Entre os críticos das restrições à publicidade infantil, a razão para isso é que a maioria dos anunciantes de programas infantis eram empresas que vendiam produtos voltados para crianças. Sem poder anunciar diretamente para seu público-alvo, portanto, não haveria razão para investir em publicidade nos intervalos desses programas, o que acabaria tornando-os insustentáveis para as emissoras.
Essa ideia, no entanto, é refutada por organizações que defendem o consumo conscienteespecialmente o Instituto Alana, uma das vozes mais proeminentes na proteção à criança.
Desde 2005, o Instituto vem se concentrando na questão da publicidade infantil e, posteriormente, criou o Programa Criança e Consumouma plataforma que visa orientar a sociedade sobre a importância de preservar as crianças dos apelos do marketing para formar uma sociedade menos consumista e mais consciente de suas escolhas.
Segundo o Instituto Alana, a razão pela qual as emissoras de TV aberta praticamente eliminaram a programação infantil de suas grades deve-se à mudança no comportamento do consumidor e à alteração na dinâmica do mercado, que concentrou os programas infantis em canais pagos especializados, deixando o espaço da TV aberta para atrações voltadas para públicos de todas as idades.
Boas práticas em publicidade infantil
Se a questão da publicidade infantil já gerava divergências há alguns anos, com a disseminação da mídia digital, a discussão se tornou mais complexa, pois as crianças estão mais expostas a conteúdos em diferentes janelas.
Por esse motivo, os principais participantes do setor de tecnologia têm tentado voltar sua atenção para a questão do conteúdo publicitário voltado para crianças.
Em outubro de 2021, o Google, juntamente com o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar), lançou um manual de diretrizes gerais para criadores de conteúdo, anunciantes e agências sobre publicidade infantil.
O conteúdo foi elaborado com a participação do Ministério Público do Estado de São Paulo e tem como objetivo alinhar o setor às mesmas diretrizes. No guia, o Google destaca que um dos fatores a serem levados em consideração na concepção da publicidade dirigida ao público infantil é a importância de se observar a condição da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento, com cuidados especiais em relação à segurança, à preservação da identidade e à proteção da personalidade data.
O guia identifica que todo material publicitário destinado a crianças deve ser identificado de forma clara e acessível e ser consistente com a faixa etária do público-alvo, o que impossibilita, por exemplo, a propaganda de bebidas alcoólicas ou armas de fogo.
Produtos licenciados e outros tipos de abordagens para crianças
Outra área que tem grande peso em termos de consumo infantil são os produtos licenciados. Uma pesquisa realizada em 2017 pela Associação Brasileira de Licenciamento (Abral) mostrou que 80% de todos os produtos licenciados no país são voltados para o público infantil.
O licenciamento se tornou uma importante fonte de receita para diversas empresas e marcas, que aproveitam o sucesso de personagens de animações, filmes e séries para lançar produtos em diversos segmentos, desde brinquedos até roupas e utensílios domésticos.
Entre as empresas com forte presença no segmento de licenciados estão gigantes como Disney, Barbie, Marvel, DC Comics e outras.
O que você precisa considerar sobre a publicidade infantil
A questão da publicidade infantil, portanto, está longe de ser resolvida e de ser um consenso entre as partes envolvidas no setor de comunicações.
O que é importante observar é que a sociedade, assim como as grandes marcas de publicidade, tem se mostrado disposta a enriquecer o debate com informações e ideias que podem direcionar o caminho para que as empresas encontrem formas de impactar seu público-alvo sem quebrar as regras ou direcionar apelos desenfreados de consumo a um grupo sem discernimento sobre o que seria adequado ou não em termos de consumo e escolhas.